terça-feira, 15 de setembro de 2009

A invenção dos hieróglifos

Thot, o íbis sagrado, era tido e havido como o mais sábio dos deuses egípcios. Versado em todas as artes, em especial as da magia e da medicina, o deus vivia a maior parte do seu tempo retirado, entregue a seus deliciosos estudos. — Graças a Rá, de volta ao meu esconderijo! — dizia ele, todas as vezes que retornava a sua casa, depois de cumprir alguma obrigação aborrecidamente terrena como, por exemplo, ir escutar os pedidos dos seus devotos no seu majestoso templo de Hermópolis. “Beatos!”, pensava ele, enquanto preparava-se para recomeçar seus estudos. “O dia inteiro Thot sagrado, dê-me isto; Thot sagrado, dê-me aquilo. Entretanto, nunca em todos estes anos ouvi qualquer desses asnos me pedir um pingo de sensatez ou de inteligência!” Sentando-se, então, na sua posição preferida, com as pernas cruzadas sobre sua esteira trançada com fios de ouro, Thot voltava a ativar outra vez as células do seu cérebro privilegiado. — Muito bem, onde paramos? — dizia ele, esfregando as mãos de alegria, já completamente esquecido da malta desprezível do templo. Trazendo o ar de uma ave curiosa — pois no lugar das feições humanas tinha a máscara de um íbis, com seu longo bico levemente recurvo e extremamente fino —, seus olhos negros arregalavam-se de prazer ao entregar-se novamente as suas profundas elucubrações. Depois de ter inventado a geometria, o calendário e o jogo de dados, Thot agora dava os últimos retoques no inédito jogo de xadrez — pois o deus, afinai de contas, também tinha lá suas vaidades.

— Divino! — disse ele, sacudindo o bico adunco, ao elaborar uma nova regra. Entretanto, apesar de sua mente prodigiosa, desta vez Thot atrapalhou-se. — Será que esta nova regra não vai conflitar com alguma outra...? — perguntou-se o deus, alisando o bico da base até a ponta, enquanto repassava mentalmente, uma por uma, as 734 regras que já havia inventado para o jogo. Aos poucos, Thot começava a dar-se conta de que a idade, infelizmente, já começava a pesar também sobre a sua prodigiosa memória.

— Pela asa negra do íbis! — exclamou ele, ao dar-se conta de que ocorria uma misturada em sua cabeça. — Como é que vou fazer depois para que estes energúmenos decorem todas as mil regras do jogo? Sem se dar conta, lentamente, o espírito de Thot ia abandonando o seu amado jogo para entregar-se a uma reflexão muito mais importante. — Espera ai — disse ele, arregalando subitamente os olhos negros. — E se eu inventasse um modo de registrar, de alguma maneira, não só as idéias e regras que forem me ocorrendo, mas toda e qualquer idéia? — Sim, eu poderia registrar num papiro, sob a forma de alguns signos, todas as palavras que escuto — disse Thot, cada vez mais entusiasmado. — Seria a vitória final da lembrança contra o esquecimento! Tomando então de um enorme rolo de papiro, o deus esteve um bom tempo com um finíssimo caniço suspenso na mão, sem chegar, contudo, a qualquer resultado. — Mas que espécie de signos usarei, afinal — disse ele, mordiscando a ponta do caniço —, para representar coisas abstratas e incorpóreas como o amor e o ódio? Tornado ao mesmo tempo pela aflição e pelo entusiasmo do desafio, encerrou-se como nunca dentro de seu cérebro para encontrar uma solução.

Thot, inteiramente empolgado, a procurar uma solução! Quem não viu isso, não viu uma das coisas mais admiráveis deste mundo. Durante dias e dias ele esteve sentado na sua esteira, interrompendo apenas ligeiramente suas poderosas reflexões para trocar de posição as pernas doloridas. E então, de tanto estar sentado, seu corpo foi assumindo aos poucos a forma de um grande babuíno branco, cujas únicas partes escuras eram a face, o grande traseiro pontudo e a extremidade dos membros. Seus olhos, no entanto, traziam ainda o mesmo brilho da inteligência que animava seu cérebro insaciável de conhecimento, redigindo da direita para a esquerda, Thot ia montando aos poucos um jogo infinitamente mais sedutor e sofisticado do que o do xadrez. Através da união de diversas figuras, o deus ia representando ideogramas, sob o papiro, que deixavam perfeitamente representadas as idéias que passavam por sua mente. E o melhor de tudo era que essas idéias agora deixavam de ser reféns exclusivas da memória humana, tão incerta e falível, para tornarem-se registros exatos e perfeitamente reproduzíveis em qualquer lugar. De fato, bastava agora a simples leitura daqueles sinais para que a mente humana pudesse “escutar com os olhos” palavras ditas há cinco segundos ou há milhares de anos! Ao completar seu primeiro rolo de papiro escrito, Thot babuíno desenrolou-o inteiro diante de seus olhos amendoados com um misto de alegria e apreensão. — Será que serei capaz de entender tudo quanto escrevi? — disse ele, temeroso de que sua memória fosse lhe pregar uma peça justamente agora. Desdobrou então o grande rolo sob os seus joelhos peludos e começou a lê-lo desde a principio, com a voz embargada pela emoção: — “E então, das águas escuras e imóveis do sagrado Nun, foi surgindo a pequena flor de lótus que trazia em seu seio o maior dos deuses...”

Thot leu palavra por palavra tudo quanto havia escrito cuidadosamente com a ponta afiada do seu caniço. Estava tudo, de fato, maravilhosamente compreensível! — Só falta batizar agora estes signos que inventei — disse ele, deliciado em poder gastar o restante do tempo numa tarefa tão agradável. O deus, na verdade, gastou quase o mesmo tempo de que se utilizara para inventar a escrita para dar-lhe um nome — mas, enfim, o fez, chegando a uma conclusão.

— Hieróglifo... Sim é isto! — disse ele. Mas tão logo pronunciou o nome, este não lhe pareceu de todo perfeito. — Ou, quem sabe, hieroglífo... o resto do dia Thot passou nessa dúvida torturante, sem conseguir decidir-se, até que resolveu levar sua invenção para Rá, de forma que o maior dos deuses a aprovasse e decidisse também qual o melhor nome para ela. . . . No dia seguinte, Thot rumou, com efeito, para Tebas, a sagrada morada de Rá. Tendo retornado outra vez a sua forma de Íbis, o deus inventor levava amorosamente debaixo do braço os seus projetos, quando, enfim, chegou a cidade das cem portas. Thot estava profundamente nervoso. Dirigindo-se rapidamente ao templo de Rá, adentrou-o num misto de euforia e receio. — Thot, você por aqui? — disse o deus solar, erguendo-se de seu resplandecente trono para recebê-lo. — Sim, poderoso Rá — disse Thot, prosternando-se diante do deus soberano. — Trago-lhe minhas novas invenções para que de sua aprovação, tomando-as, assim, aptas a serem utilizadas pelos deuses e pelos homens.

O disco solar que encimava a cabeça de Rá acendeu-se um pouco, o que podia significar muitas coisas. Como um verdadeiro alfabeto luminoso, as gravações da luz sobre sua cabeça eram sinais perfeitamente identificáveis — embora somente aos iniciados nos mistérios de Rá — dos sentimentos que iam em sua alma. Thot, naturalmente capaz de perceber tais sutilezas, descobriu que aquela luz amarela levemente tingida por um tom alaranjado significava que Rá estava num estado de expectativa muito parecido com o seu, com a diferença de que isto também lhe causava um ligeiro aborrecimento. Em palavras humanas, poderia ser traduzido mais ou menos como “Ih, lá vem de novo o chato do Thot com seus inventos!”. Sem deixar-se intimidar por esse funesto presságio, Thot foi adiante. — Traga-lhe, primeiramente, um novo e maravilhoso jogo que acabei de inventar — disse ele, mostrando a Rá o grande tabuleiro. O deus soberano recuou, instintivamente, o trono, onde foi sentar-se para escutar as primeiras explicações do deus inventor. Com a cabeça apoiada providencialmente no punho direito e a outra mão agarrada firmemente ao assento, Rá preparou-se para a torrente inevitável de palavras que se anunciava, “Como gosta de complicar!”, pensou o deus solar, logo de saída, ao escutar o nome extenso que Thot cedera ao jogo. Tendo tirada a primeira prova, Rá acomodou-se melhor no assento, preparado já para o pior. Uma ligeira sensação de angústia, que ameaçava derivar em breve para a fobia, foi apoderando-se aos poucas da alma do maior dos deuses a medida que escutava todos os passos da explicação para os complicados movimentos das peças sobre o tabuleiro.

Que fedor de babuíno branco é este...?”, pensou Rá, ao mesmo tempo em que prosseguia escutando a lengalenga do inventor. — Então, poderosa divindade, quando a torre alcançar a sexta casa... Remetido de nova as sensações primeiras que antecederam ao seu nascimento, Rá começou a sentir-se imerso outra vez nas sufocantes águas do Nun — o velho Nilo primordial —, única coisa a existir quando o universo ainda não passava de um grande oceano de águas mortas e paradas. Seus olhos lentamente começaram a fechar-se.

Decidido, porém, a não permitir que Thot o pegasse num súbito cochilo, Rá aumentou poderosamente a luz de seu disco solar, a fim de ofuscar ao visitante qualquer visão inconveniente para si. — ...e finalmente aqui temos, alteza solar, a lance principal do jogo, cantando a milésima e última regra do manual, que denominou provisoriamente de “Faraó severamente encurralado”. A expressão “miseravelmente encurralado” ecoou durante um bom tempo na mente de Rá, até que ele foi despertado por um súbito silêncio, Ao abrir os olhos, a deus solar deparou-se com a figura de Thot parada em frente a si, com o longo e negro bico pendente e levemente entreaberto. — E então, alteza solar...? — disse Thot, com o ar angustiado de quem repetia aquilo pela décima vez. Rá aprumou-se em seu trono, enxugando discretamente um filo de saliva do canto da boca. — Está perfeito — disse ele, sem piscar. Um ligeiro brilho de satisfação iluminou os olhos de íbis de Thot. — E mesmo, alteza? — disse o inventor, animando-se, — Mas sabe, como a coisa ainda está numa fase de ajustes, talvez pudéssemos refazer juntos algumas partes... — Ninguém vai refazer nada — acrescentou imediatamente Rá, pondo um fim à exposição.

Em seguida, cruzou as pernas sob o trono, gesto demasiado informal que só a extrema impaciência poderia ditar as suas maneiras normalmente concedidas. — Vamos lá, mostre o resto de suas invenções, que já se faz tarde. De fato, o dia já descambava e Rá sentia que se aproximava a hora maldita de mergulhar outra vez na noite trevosa do Amanti. Ali, teria de enfrentar pela bibianésima vez a gigantesca serpente Apópis, a qual, como num pesadelo, tentava impedi-lo todas as noites de regressar com sua barca luminosa para mais um novo dia igual a todas os outros.

— Tenho aqui também um outro projeto, na verdade ainda em estada de gestação — continuou a tagarelar Thot, puxando da pasta um outro papiro. — Veja, é um jogo muito fácil... — Basta de jogos — disse Rá, categoricamente. Sentindo que o fio da paciência de Rá esgarçava-se, o deus inventor decidiu mostrar de uma vez a sua maior invenção: o “Revolucionário e absolutamente maravilhoso alfabeto de Thot”. “o que mais, agora, meu Pai?”, pensou Rá, agoniado. Thot desenrolou em triunfo, diante dos olhos de Rá, o seu imenso papiro. — o que e isto? — disse ele, mirando aborrecidamente a mistura de sinais. — Oh, são signos...! — Oh, e poderia me dizer a que são signos? — São sinais genéricos significantes, grande Rá, que, reunidos, da forma a um discurso.

Na verdade, ainda estou em dúvida se as chamarei de “hieroglífos” ou “hieróglifos”, mas com o auxilio de uma ciência mágica que pretendo fundar, chamada “semântica”, porei um fim a esta dúvida atroz, ao mesma tempo em que esclarecerei detalhadamente todas as coisas pertinentes ao meu alfabeto... Então, o fio rompeu-se de uma vez. — Na verdade, tagarela maldito, você vai parar de enrolar e me dizer de uma vez por todas para que serve toda essa rabiscada...! Com o bico negro completamente pálido, Thot começou a explicar, o mais rápido que pôde, ao significado de tudo aquilo. — E deste modo, Rá poderoso, doravante não precisaremos mais decorar coisa alguma, por que nossos conhecimentos jamais se perderão — disse Thot, subindo lentamente outra vez nos tamancos da vaidade. — Muito bem — disse Rá, enigmaticamente. — não precisaremos mais usar nossa memória e, assim, progressivamente, iremos perdendo a traquejo dela até o dia em que não lembraremos mais o nome de nossas próprias mães. — Bem, meu invento, alteza solar, destina-se apenas a armazenar uma gama muita extensa de conhecimentos como, por exemplo, as mil regras do meu jogo... — De novo o maldito jogo? — ... e qualquer outro conhecimento mais extenso, naturalmente... Thot sentiu que a coisa periclitava. Percebendo que o mau humor de Rá poderia botar a perder um avanço magnífico para a humanidade e para os próprios deuses, resolveu recorrer ao recurso, sempre eficiente, de todo bom cortesão: a lisonja. — Imagine, soberano Rá, que doravante todos os seus feitos magnânimos poderão estar perfeitamente armazenados em dourados papiros — disse Thot. — Poderemos mesmo montar uma biblioteca gigantesca com todas os poemas e discursos que se fará em seu louvor e de toda a sua dinastia, e que as futuras gerações lerão com infinito gosto e proveito. — Poderoso Rá, pense só nisto: suas palavras para sempre registradas num livro sagrado, que todos lerão e entenderão!

"Minhas divinas palavras para sempre registradas em um livro sagrado e imutável!", pensou o deus, começando a simpatizar aos poucos com aquele negócio de sinais e rabiscos.

Ao cabo, a idéia revelou-se tão boa que Rá aprovou-a integralmente, chegando mesmo a elogiar mentalmente o inventor depois que este se retirou, todo eufórico: - "esse tal de Thot é bárbaro, mesmo!".

Depois voltou docemente a divagar, com um sorriso divino no rosto e um brilho extraordinário no disco solar, que ofuscou todo o templo: "finalmente terão enfim na corte, as dissensões entre os teólogos rivais!", pensou ele, encantado. "Adeus disputas insensatas acerca do que eu tenha ou não dito algum dia" Nunca mais querelas sanguinárias por causa de versões conflitantes! Meu culto, doravante uno e igual, abarcará todas as seitas, unidas apenas pela verdade, expressa para sempre de uma única forma no Sagrado e Imutável Evangelho de Rá...!"

Como todo bom Deus, Rá não conhecia nada sobre teólogos.

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Egito

Duas grandes forças: o rio Nilo e o deserto do Saara, configuraram uma das civilizações mais duradoras do mundo. Todos os anos o rio inundava suas margens e depositava uma camada de terra fértil em sua planície aluvial. Os egípcios chamavam a região de Kemet, "terra negra". Esse ciclo fazia prosperar as plantações, abarrotava os celeiros reais e sustentava uma teocracia – encabeçada por um rei de ascendência divina, ou faraó – cujos conceitos básicos se mantiveram inalterados por mais de 3 mil anos. O deserto, por sua vez, atuava como barreira natural, protegendo o Egito das invasões de exércitos e idéias que alteraram  profundamente outras sociedades antigas. O clima seco preservou artefatos como o Grande Papiro Harris, revelando detalhes de uma cultura que ainda hoje suscita admiração.

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