Segundo uma estatística impossível de verificar, o Egito teria uma população de 6 milhões de burricos. Um para cada dez habitantes, o que seria provavelmente um recorde mundial. O burro do Delta é negro e robusto, já o do Alto Egito, branco ou grisalho, mais esguio, podendo atingir 1,20 m de altura.
Os coices muitas vezes se destinam ao enxame de moscas a atormentá-lo. E os zurros desesperados, aqueles inconfundíveis ih-ham, expressam menos tristeza ou revolta do que uma fome legítima após horas de trabalho ininterrupto. Um punhado de bersim (a alfafa local), e ele já está de volta a lida. Na época do cio, segundo dizem, os gemidos libidinosos podem estender-se por dez, até mesmo 15 km.
O burro selvagem já existia no Vale do Nilo desde o Paleolítico. Já o burro doméstico apareceu por volta de 3.600 aC. Raramente era montado. Servia para transportar os mais diversos produtos e realizar tarefas mais tarde transferidas para os camelos. Sua grande utilidade não impede que o considerem impuro, quando não mau, sobretudo se tiver o pelo ruivo. Por ser identificado com o deus Seth, o assassino de Osíris, não hesitam em sacrificá-lo para esconjurar o mal. Em certos hieróglifos da Baixa Época, esse animal infeliz só é representado com uma faca cravada no corpo.
Seu momento de glória é a viagem da Sagrada Família ao Egito. Diz a lenda que os descendentes do burro que teve o privilégio de levar Jesus possuem uma cruz no dorso.
Até a invenção da bicicleta e do automóvel, o burro constituía o principal meio de transporte dos egípcios. Não era só o "cavalo do pobre", como o apelidam no Ocidente: elegantes efêndis e volumosos figurões o montam de bom grado em selas decoradas.
Sempre presente nos contos e nos romances, o burro é o Rocinante de Goha, o Dom Quixote do florilégio egípcio. A vida real propicia-lhe às vezes a oportunidade de realizar feitos inesperados: em 1999, ao prender o casco numa fenda, um burrico acabou revelando a existência de uma necrópole greco-romana no oásis de Bahareya.
Fonte: 'Egito um olhar amoroso' de Robert Solé
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