domingo, 26 de abril de 2009

Aída, uma ópera faraônica

É o que poderia chamar de uma ópera nacional. Nascida às margens do Nilo, inspirada no Egito e por ele adotada mais tarde, Aída pertence incontestavelmente ao patrimônio egípcio. A idéia veio do quediva Ismail. Soberano ambicioso, de gostos caros, ele queria marcar de maneira ruidosa e inauguração do Canal de Suez, em 1869. Entre os seus projetos, estava a construção de um teatro lírico no Cairo, que seria inaugurado com uma obra tipicamente egípcia. Com esse propósito, procurou um  egiptólogo do tipo faz tudo, o francês Auguste Mariette, diretor do serviço de Antiguidades, que para seu próprio espanto, logo se pôs a escrever um libreto, a desenhar figurinos e cenários. Aída nasceu, como uma heroína faraônica de nome... árabe italianizado.

Mariette entregou seu libreto a Camille de Locle, diretor da Ópera de Paris, que o enriqueceu e estruturou em quatro atos. O texto recebeu uma tradução em versos para o italiano antes de ser encaminhado a Giuseppe Verdi, já no auge da glória. A princípio o compositor recusou. Só viria a aceitar o convite para criar Aída após longas súplicas e em troca de um generoso cachê. Para dobrá-lo, ameaçaram convidar um de seus concorrentes, Wagner ou Gounod. Ele dedicou-se então ao trabalho; mas nesse intervalo, o Canal de Suez foi aberto a circulação, e coube assim a outra de suas obras, Rigoletto, inaugurar a Ópera do Cairo. 

  • A história imaginada por Mariette não se situa de forma precisa nem no espaço nem no tempo. "A trama se passa às margens do Nilo, na época dos faraós", indica o libreto, sem mais detalhes. A heroína Aída é uma princesa etíope, que foi feita prisioneira no Egito e se tornou escrava de Amnéris, a filha do faraó. As duas mulheres estão apaixonadas pelo mesmo homem, Radamés, um brilhante oficial designado para comandar o exército egípcio no combate contra a Etiópia. A vitória rende ao herói a mão de Amnéris, mas ele só tem olhos para Aída e prefere fugir com ela. Preso é condenado a ser emparedado. Reencontra então sua amada, que vem morrer com ele...

Verdi pôs todo o seu talento na tarefa de evocar o universo faraônico, por meio de sonoridades estranhas, inspiradas em melodias orientais. O refinamento dessa escrita vocal e orquestral se manifesta particularmente no começo do quarto ato (Amnéris vê que seu amor lhe escapa), hoje uma das passagens para mezzo-soprano mais conhecidas do repertório lírico. A obra culmina no "O terra, addio", quando Radamés e Aída se despedem deste mundo.

Verdi não ousou ir ao Cairo, onde sua ópera foi encenada pela primeira vez no dia 24 de dezembro de 1871. A estréia foi um imenso sucesso, apesar da aparência ridícula dos artistas europeus, que se recusaram a raspar a cabeça e bigode, como exigiam seus papéis. No ano seguinte, no Scala de Milão, os cantores tiveram de voltar 32 vezes ao palco. Depois em Nova York, Paris... e, indefectivelmente, o Cairo, onde não se cansam de programar essa ópera faraônica. Durante a Segunda Guerra Mundial, a grande ária de Aída encerrava todos os saraus radiofônicos de "Cairo Calling".

A Ópera de Ismail foi destruída por um incêndio em 1971. Um novo teatro, oferecido pelo Japão, foi erguido na ilha de Guezira: com seu estilo islâmico despojado, o edifício de cor ocre não deixa de ter charme. A direção artística do teatro ficou a cargo do tenor Hassan Kamy, primeiro intérprete egípcio de Radamés, que descobriu sua vocação ao conhecer a obra de Verdi, aos 11 anos.


Em outubro de 1997, em comemoração aos seus 125 anos, Aída foi montada no templo de Hatshepsut, em Luxor. Alguns dias depois, no mesmo local, 60 turistas foram brutalmente assassinados por um comando islâmico. Estupor e indignação. O Egito, tendo-se tornado uma terra perigosa foi logo abandonado pela maioria de seus visitantes estrangeiros. Os artistas voltaram então ao local do massacre para participar de manifestação solene em memória das vítimas. Dessa vez, diante do templo de Hatshepsut, os coros de Aída mesclaram-se à música tradicional egípcia e foram ouvidos pelo presidente Mubarak e seus ministros, presentes à cerimônia. Uma ópera nacional...

Por: Robert Solé no livro 'Egito um olhar amoroso'

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Egito

Duas grandes forças: o rio Nilo e o deserto do Saara, configuraram uma das civilizações mais duradoras do mundo. Todos os anos o rio inundava suas margens e depositava uma camada de terra fértil em sua planície aluvial. Os egípcios chamavam a região de Kemet, "terra negra". Esse ciclo fazia prosperar as plantações, abarrotava os celeiros reais e sustentava uma teocracia – encabeçada por um rei de ascendência divina, ou faraó – cujos conceitos básicos se mantiveram inalterados por mais de 3 mil anos. O deserto, por sua vez, atuava como barreira natural, protegendo o Egito das invasões de exércitos e idéias que alteraram  profundamente outras sociedades antigas. O clima seco preservou artefatos como o Grande Papiro Harris, revelando detalhes de uma cultura que ainda hoje suscita admiração.

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